Autor do livro "Traumas e superação" (Editora
Roca), Júlio Peres diz que vários estudiosos já reconhecem o potencial de crescimento do ser humano,
frente à adversidade. Psicólogo clínico e doutor em neurociências e
comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Peres
explica, a seguir, por que algumas
pessoas têm habilidade para atravessar dificuldades e diz como é possível
seguir em frente: Por que alguns indivíduos têm
essa capacidade de superar obstáculos?
A
cultura chinesa traz uma interessante contribuição sobre possibilidade de
prosperar e crescer a partir de acontecimentos dolorosos. A palavra "trauma" (chuangshang) é a
justaposição de dois caracteres: "criação"
(chuang) e "dor" (shang).
Vários autores reconhecem o potencial de
crescimento frente à adversidade.
Durante
a última década, a Psicologia e a Psiquiatria têm estudado os diferenciais de
comportamentos dos numerosos exemplos de indivíduos
que cresceram após seus traumas como esteios para novas formulações de estratégias
terapêuticas. O número de publicações científicas sobre o crescimento
pós-traumático de indivíduos
acometidos por acidentes, enfermidades, internações
hospitalares, violência urbana e doméstica, assalto, estupro e desastres
naturais aumenta significativamente. O conjunto desses estudos revela
que a resiliência (capacidade de
atravessar adversidades e voltar à qualidade satisfatória de vida), hoje,
também, pode
ser aprendida e operacionalizada durante a psicoterapia sem negar evidentemente
a dor e o sofrimento.
Geralmente,
as pessoas que conseguem prosperar a partir das dificuldades apresentam cinco fatores: abertura para novas
experiências, desenvolvimento de novos interesses e objetivos de vida;
apreciação e valorização da vida; melhor relação familiar e interpessoal
permeada por gratidão, bondade e amor; desenvolvimento espiritual, resgate da
religiosidade e espiritualidade no dia-a-dia e descoberta de força e recursos
pessoais para superação de adversidade, coragem, honestidade e perseverança.
Os
estudos concluem que o crescimento pós-trauma se relaciona com o fortalecimento do caráter e da generosidade
e esses achados são também observados como preditivos de um estilo de vida
saudável em estudos populacionais sobre bem-estar e felicidade. O que geralmente move essas pessoas?
Existe
uma frase conhecida entre os velejadores que se aplica à resposta para essa
pergunta: "não
há vento que possa ajudar, se não existir um objetivo demarcado para chegar".
As pessoas que velejam sabem que qualquer vento pode ser aproveitado para
chegar ao destino planejado anteriormente. Pois bem, essas pessoas têm como
motivação - palavra cuja etimologia envolve movimento - um forte e bem demarcado objetivo. Tal objetivo de vida favorece o investimento
da energia física, psíquica e espiritual em uma direção clara, sem desperdício.
Assim
como a água, essas pessoas geralmente combinam a força alavancada pela motivação com a flexibilidade, que
escolhe os melhores caminhos, desvia das resistências/pedras para chegar
agilmente ao destino. Observo em minha prática clínica que as pessoas em dificuldades, ao trazerem clareza dos objetivos e
significados para suas existências, fortalecem a motivação e desenvolvem
naturalmente o binômio força e flexibilidade para o alcance da superação e da
realização pessoal. Qual o diferencial delas?
Estudos
sobre resiliência mostraram que três são os diferenciais das pessoas
que superam mais facilmente suas dificuldades, assim como seus traumas: auto-diretividade (confiança em seus recursos pessoais); cooperação
(visão que envolve o bem do entorno, e não apenas o benefício pessoal) e auto-transcendência
(prática da espiritualidade e religiosidade).
Contudo,
devo esclarecer que a resiliência não é uma característica rígida ou fechada
que simplesmente o indivíduo apresenta ou não. Ao contrário, a resiliência se relaciona com
permeabilidade e aprendizado. A psicoterapia especializada tem ajudado muitas pessoas
que atravessam dificuldades severas ou apresentam respostas pós-traumaticas a
desenvolverem traços de resiliência para a construção do alicerce e pavimento
de seus caminhos de superação. Em geral, elas conseguem exercer
influência sobre quem convive com elas?
Certamente.
Costumo dizer aos meus pacientes que a
relação com o entorno é uma via de mão dupla. Podemos tanto receber as
influências de episódios inesperados, dolorosos e adversos, como também podemos
influenciar o entorno e as pessoas com as quais convivemos.
Pergunto
aos meus pacientes ao fim do processo terapêutico, na sessão de alta: se você pudesse modificar o passado hoje,
você escolheria não ter passado pela dificuldade que o trouxe aqui? Grande
parte responde que a dificuldade os ensinou a construir uma qualidade de vida
relativamente superior à que tinham antes da ocorrência dolorosa ocorrer, e,
por isso hoje, são gratos pela oportunidade de crescimento que suas vivências
adversas lhes trouxeram.
Exemplos
de superação também podem
influenciar entendimentos e
comportamentos saudáveis, especialmente para aqueles que não encontram
outras sínteses adaptativas ou representações para o acontecimento doloroso ou
traumático. Os
neurônios-espelho participam ativamente
desse processo em que experimentamos a empatia,
reconhecemos os referenciais cognitivos
de outros indivíduos e fundimos tais
referências ao nosso repertório, permitindo a geração de comportamentos
similares de superação.
Por isso, em meu livro "Trauma e Superação",
inseri vários exemplos que também sensibilizarão o processo de crescimento
pessoal daqueles que se percebem "sem saída". Qualquer pessoa pode superar obstáculos e seguir em frente? Existe
uma fórmula para isso?
A
população geral é afetada pelas características traumatogênicas do mundo
contemporâneo com a difusão da
impotência, fragmentação das funções
parentais, solidão, comprometimento da capacidade empática, tendência ao
individualismo, incremento da rivalidade em detrimento da solidariedade,
desamparo e crise de valores.
Alguns desses fatores podem causar
micro-traumas e resíduos cumulativos ao longo do tempo, desencadeadores de
sintomas tais como aqueles causados por grandes eventos traumáticos. A
despeito das influências ansiógenas, (*)estudos
epidemiológicos revelam que a maioria de nós sofreu ou sofrerá um ou mais
eventos potencialmente traumáticos. Em torno de 10% da população geral
apresenta Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e 30%, TEPT parcial,
enquanto grupos de risco podem apresentar prevalência do transtorno entre 52% e
87%. (*”Epidemiologia é a
ciência da saúde coletiva que estuda a relação de causa-efeito, ou causa-doença.”)
Contudo, a resposta é: sim, qualquer pessoa pode superar obstáculos e seguir em
frente. Em meio ao mar da inconsciência e a pressa da vida diária, a
adversidade ou o trauma, por outro lado, podem despertar a busca de um sentido
maior para a existência. A psicoterapia
especializada tem facilitado o desenvolvimento da resiliência, em que as
pessoas maximizam aprendizados por meio de suas experiências traumáticas e
criam oportunidades de crescimento pessoal com a introdução de novos valores e
perspectivas para a vida. Observamos que a angústia e o crescimento pós-trauma ou adversidade podem caminhar
juntos quando uma aliança de
aprendizado com o sofrimento é construída, favorecendo a construção de benefícios
adicionais para a qualidade de vida anterior à ocorrência do trauma.
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