"Vossos filhos não são vossos
filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de
vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem. Podeis
outorgar-lhes o vosso amor, mas não vossos pensamentos. Porque eles têm os seus
próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas. Pois suas
almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos a ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós.
Porque a vida não anda para trás e não se detém nos dias passados. Vós sois
arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas. o Arqueiro mira
a senda do Infinito e vos estica com toda a Sua força para que Suas Flechas se
projetem, rápidas e para longe. Pois, assim como Ele ama a flecha que voa, ama
também o arco que permanece estável" (Gibran Kalil Gibran - O Profeta)
Estes versos
poderiam constituir a epígrafe de Mãe e Filho, de Calin Peter Netzer, um drama
familiar romeno sobre uma mãe que não consegue abrir mão do filho adulto.
Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2013, Mãe e Filho é mais um nobre
descendente da chamada renascença do cinema romeno.
É um drama familiar sobre os limites do amor materno e a ténue fronteira entre
cuidado e excesso de zelo obsessivo e controlador.
Instinto Materno - Trailer Oficial - Legendado
O
filme centra-se na relação disfuncional
entre uma mãe e um filho. Quando Barbu (Bogdan Dumitrache), um homem na casa dos 30, atropela
mortalmente um rapaz numa autoestrada nos arredores de Bucareste, talvez em
razão de excesso de velocidade, Cornelia Keneres (Luminita Gheorghiu), uma
arquiteta bem relacionada e mãe super protetora, multiplica-se em esforços para
salvar o filho da cadeia.
O problema é que Cornelia
praticamente se substitui ao filho nesse afã, num excesso de zelo e
voluntarismo inadequados perante alguém que tem idade para ser autônomo e
resolver a sua vida.
Mas a índole passiva de Barbu não facilita essa libertação. Cornelia
é possessiva em relação a ele, como se sentisse que este é propriedade sua, apenas
“alugada” ao mundo. Daí que os seus esforços para tomar o
controle sobre a vida do filho sejam também uma forma abusiva de não respeitar
o seu direito à autodeterminação, à independência e à emancipação.
Cornelia é afinal, a seu modo, uma mãe
tirana.
Temos
assim uma protagonista pluridimensional, capaz de captar a nossa atenção,
coerente nas suas próprias contradições, que à primeira vista parece ser
essencialmente poderosa e autoritária,
mas cujo poder deriva, acima de tudo, das suas próprias fraquezas. É
evidente, de fato, desde o primeiro instante, que Cornelia ama o filho e que se preocupa com ele, mas só no final nos é
inteiramente dado a entender que o medo
de o perder (sendo ele a única coisa que ela tem na vida, como ela própria
chega a admitir) consiste na principal razão para a obsessão claramente
exagerada que ela tem por controlá-lo e para não o perder de vista.
Incapaz
de admitir o seu carácter obsessivo, culpa Carmen, a namorada de Barbu, por
mantê-lo trancado em casa e de o proibir de falar com a mãe, e considera-se uma
mulher frontal e honesta – na mesma conversa em que tentara convencer Carmen a
manipular Barbu -, e como tal “uma mulher difícil”.
Na
verdade, se o acidente de Barbu constitui uma oportunidade para a mãe “reaver” (recuperar) nostalgicamente o
ascendente perdido sobre o filho, por outro lado vem facilitar a eclosão de um psicodrama familiar latente em que
parece imperar um perverso conflito edipiano.
A psicologia explicaria provavelmente esta
relação à luz do conceito de duplo
vínculo, em que a mãe enviaria inconscientemente a mensagem “podes aventurar-te fora da nossa família mas
nunca estarás tão bem como conosco”. O que é uma outra forma de dizer que
Cornelia quer uma relação de
exclusividade com o filho, sem “intromissão” de mais ninguém, ela que, por sinal, se intromete demasiado
na sua vida, obtendo dele uma natural reação de fuga. Mas a verdade é que amar um filho é também, a certa altura,
deixá-lo ir
e viver liberto da ilusão onipotente (cujo poder é absoluto) e obsessiva
de controle.
Mãe e Filho é um drama
psicológico de um realismo impressionante, com uma interpretação contida mas pujante
de Luminita Gheorghiu. E a cena final, quando Barbu, dentro do carro à porta da
casa da família enlutada, diz à mãe “por
favor, solta-me” (pedindo-lhe para
abrir as portas), é devastadora de força simbólica.
"A
nossa mais elevada tarefa deve ser a de formar seres humanos livres que sejam
capazes de, por si mesmos, encontrar propósito e direção para suas vidas."
(Rudolf Steiner)
(Texto
originariamente publicado na edição de 30 de março do Diário de Notícias)