O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa aqueles que observam e deixam o mal acontecer.(Albert Einstein)
Existem três classes de pessoas: aqueles que veem aqueles que veem quando são mostrados, aqueles que não veem.(Leonardo da Vinci)
Você pediu que eu escrevesse
sobre a maldade. Foi a primeira vez que uma pessoa me pediu isso. Você foi
corajoso porque falar sobre a maldade é falar sobre nós mesmos. A maldade é
algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se apossar do nosso
corpo. Ao pedir que eu falasse sobre a maldade você me pediu que o ajudasse a
entender o lado escuro de você mesmo.
Por isso, muitas pessoas são
vegetarianas. Elas não suportam pensar na dor por que passam os bichos para que
nós nos lambuzemos com a carne deles. Uma pessoa muito querida, que não é
vegetariana, não consegue comer frango ao molho pardo. O molho pardo desse
frango se faz com sangue – e ela se lembra de haver visto frangos de pescoço
cortado, pendurados num gancho, agonizantes, seu sangue vagarosamente pingando
num prato. Agora, sempre que ela vê frango ao molho pardo, ela se lembra do
sofrimento daquela ave inocente. Os bichos também sofrem.
O amor nos liga à natureza
toda. Eu amo a natureza – os riachos de água limpa, as cachoeiras frias, as
matas com suas samambaias, avencas, orquídeas, bananeiras, as borboletas,
cigarras, pássaros. Nós humanos, temos olhos deformados – não percebemos a
beleza dos seres que são diferentes da gente. Mas todos eles, inclusive os
besouros (que alguns chamam de “bisorros”), as rãs, os lagartos, as
marias-fedidas, as taturanas, os urubus – todos eles querem viver, sofrem,
fazem parte desse nosso mundo e são necessários à sua existência. Todos eles
são nossos irmãos – porque todos nós teremos o mesmo fim. Um dia nós voltaremos
à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha...
Aquilo que eu amo eu quero
proteger. Proteger o cachorrinho, o muro de casa, a natureza... Às vezes, a
gente quer algo anterior ao proteger: a
gente quer criar. Você ainda não é pai. Não tem, portanto nenhum filho para
proteger. Chegará um dia, entretanto, em que você desejará ter um filho que
você ainda não tem. Para isso é preciso que você tenha os poderes de homem –
para semear no ventre de uma mulher a semente do filho que você ama, mas ainda
não tem. Você deseja ser (ainda não é) administrador de empresa, cozinheiro,
médico ou flautista: você ama essas coisas; mas ainda não é. O amor sozinho,
não faz milagres. Para ser qualquer dessas coisas você terá que, de vargazinho,
ir desenvolvendo poderes no seu corpo, poderes que tornarão a forma ou de
conhecimentos ou de habilidades.
Já a morte anda rápido. Mata-se numa fração de segundo. Basta puxar um gatilho. Ou pisar o bicho. Ou quebrar o ovo. Corta-se uma árvore que levou cem anos para crescer em poucos minutos: se for uma bananeira, basta um golpe de facão. Você me perguntou sobre a maldade: a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir, isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida. Bondade é o poder usado para a vida. Maldade é o poder usado para a morte.
A adolescência é o momento da vida quando se descobrem as delícias do poder. Criança tem amor, mas não tem poder. Ela quer sorvete, mas não tem o dinheiro. A mãe segura põe de castigo, dá palmada. A criança é impotente. Na adolescência o corpo se desenvolve. Fica maior que o corpo da mãe, o corpo do pai. Ganha força. Juntos, então os adolescentes se constituem num exército poderoso. É por isso que os adolescentes gostam de estar juntos: isso lhes dá um sentimento de poder. Há coisas que nunca fariam sozinhos. Mas, em grupo, tudo é permitido. As pessoas mais mansas podem se tornar monstruosas em grupo. No grupo a gente perde o senso da responsabilidade moral.
Como eu já disse, o poder, como
fim em si mesmo, sem um propósito de amor, dá prazer rápido. Quebrar, pichar,
arrancar, bater, cortar esmagar, derrubar – todas essas são formas do
poder-prazer a serviço da morte. É uma coisa demoníaca.
Por isso, meu amigo,
adolescente, quero confessar uma coisa que nunca confessei: “Tenho medo de vocês”. O fascínio que
vocês têm pelo poder me assusta. É isso que é maldade: poder sem amor. Eu queria poder dar para vocês,
como herança, o ovo onde moram os meus sonhos, na esperança de que vocês
continuassem a chocá-lo, depois da minha partida. Sim, o mundo que eu amo se
parece com um ovo: está cheio de vida, mas é muito frágil. Dentro dele estão
coisas delicadas, fáceis de serem destruídas: plantas, insetos, ninhos, aves,
músicas, poemas, memórias, livros, peixes, muros brancos, crianças, velhos,
jardins...
Mas eu tenho medo que vocês não resistam à tentação de quebrar o ovo onde eu e o meu mundo moramos. Como é fácil quebrar um ovo! Fácil e irreversível: nunca mais! Assim, por enquanto, o ovo onde moram meus sonhos fica sob a minha guarda. Até encontrar os herdeiros que eu espero.
“A
tela de horrores
que
a maldade humana
projeta
no escuro,
ao
negar o amor
feito
um narciso cego,
traz
à luz outros milagres:
a
multiplicação dos cães,
e
o vinho transformado em sangue.” (ad)
Rubem
Alves, In Correio Popular, Campinas, 24.II.96
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“Não dependa de ninguém na sua vida, só de Deus, pois até mesmo sua sombra o abandonará quando você estiver na escuridão.”