A ciência do sonho
Os
sonhos continuam deixando os cientistas perplexos, mas as pesquisas recentes
investigam sobre o que sonhamos e até mesmo como poderíamos controlar os sonhos.
Quando
sua cabeça bate no travesseiro, para muitos é apagar as luzes e desligar de
tudo que você conhece. Enquanto isso, as células em seu cérebro estão muito
aceleradas, gerando energia suficiente para produzir os sonhos relaxantes e até
mesmo os assombrosos que ocorrem durante a fase de movimento rápido dos olhos
durante seu sono.
Por
que algumas pessoas têm pesadelos, enquanto outros realmente passam suas noites
em êxtase? Assim como o sono, os sonhos são misteriosos fenômenos. Mas como os
cientistas são capazes de sondar mais profundamente nossas mentes? Algumas
dessas respostas eles já estão encontrando.
Novos
livros e estudos ajudam a decifrar seu significado e mostram como isso pode
melhorar a nossa vida
"Eu acordei com uma
música maravilhosa na minha cabeça. Fui até o piano e comecei a achar as notas.
Tudo seguiu uma ordem lógica. Gostei muito da melodia, mas, como havia sonhado
com ela, não podia acreditar que tinha escrito aquilo. Foi a coisa mais mágica
do mundo."
É
dessa maneira que Paul McCartney
explica a criação de "Yesterday", 45 anos atrás. A canção até hoje
figura no livro Guinness dos Recordes como a música que ganhou o maior número
de versões cover na história, por volta de 3 mil.
Deixando
um pouco de lado a necessária dose de genialidade para a composição de um
clássico dessa magnitude, sobram questionamentos sobre se o que aconteceu com o
sonho do Beatle foi uma obra do acaso, uma predisposição genética ou uma
técnica que pode ser decifrada e difundida. E hoje, como nunca antes, os
cientistas se debruçam sobre os meandros do que acontece conosco enquanto
dormimos, tentando descobrir seu mistério e, quem sabe, ajudar algum compositor
dorminhoco a escrever uma nova "Yesterday".
É
fato que os sonhos sempre intrigaram e foram objeto de estudo, mas o que está
acontecendo agora é que eles estão sendo levados mais a sério por neurologistas, psicanalistas e biólogos.
Enquanto a biologia procura explicar quais são as estruturas cerebrais
envolvidas, a psicanálise se põe a investigar seu conteúdo. Da união dessas
duas disciplinas nasceu a neuropsicanálise,
uma tentativa de entender os aspectos físicos e psíquicos do sonho.
Nos
últimos 50 anos, apesar de a ciência entender cada vez mais como nosso cérebro
funciona quando estamos dormindo, os sonhos foram tratados como um subproduto
do sono. Em 1983, o britânico Francis Crick, famoso por descobrir a estrutura
do DNA, e seu colega Graeme Mitchison publicaram um trabalho afirmando que os
sonhos funcionavam como uma espécie de lixeira virtual, descartando todas as
memórias "inúteis" acumuladas durante o dia. Era o ápice da negação
aos estudos do austríaco Sigmund Freud (1856-1939) - pai da psicanálise e autor
de livros como A Interpretação dos Sonhos -, que ocorria desde o começo da
década de 50.
Os
estudos que vêm sendo publicados desde a virada do milênio e os novos livros
programados para chegar às prateleiras neste ano reabilitam os pensamentos de
Freud. Para ele, as imagens durante o sono simulavam nossos desejos e nos
protegiam contra a dor e os traumas passados. Essas pesquisas também defendem a
utilidade dos sonhos em ajudar a resolver problemas do cotidiano e organizar
ideias, como aconteceu com McCartney.
Na
avaliação de Carey Morewedge, professor assistente do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Carnegie Mellon, EUA, a verdade sobre os sonhos se
encontra em uma intersecção das três teorias predominantes sobre eles: a freudiana; a de que sonhos servem para consolidar memórias e aprendizado; e a crença de que suas imagens são totalmente
aleatórias. "É provável que haja um pouco de verdade em cada uma
delas", diz.
Oráculo
"Existe
essa função biológica de reverberar as memórias do passado para simular o
futuro possível", diz Sidarta. Surge então a teoria dos "oráculos probabilísticos". Os
sonhos reuniriam informações prévias guardadas em nossa memória para simular um
futuro possível. Quando o seu cotidiano é muito duro, muito violento, as
imagens do sono se tornam um mecanismo para prever com maior chance como o
amanhã deve ser. Porque você não pode errar. Se um oficial está na guerra, ele
sabe que não deve passar em determinado lugar porque há um inimigo esperando.
Nessas condições, aumentam muito as chances de o soldado ter o sono preenchido
com cenas desse tipo.
O
pesquisador finlandês Antti Revonsuo demonstrou o mesmo princípio quando
comparou os sonhos de crianças que moravam no Curdistão e na Finlândia. Entre
as crianças do Curdistão - uma região encravada entre o Irã, o Iraque e a
Turquia, vítima de ataques com armas químicas durante o governo de Saddam
Hussein -, a incidência de pesadelos foi muito maior que entre as finlandesas.
Em
outro estudo realizado na Universidade de Wisconsin, ratos foram privados do
sono REM (sigla para Rapid Eye Movement, ou movimentos oculares rápidos), período
em que os sonhos acontecem predominantemente. Nessa fase, que ocorre de quatro
a cinco vezes por noite, cada uma durando 20 minutos em média, nossos olhos se
agitam debaixo das pálpebras. Outros animais analisados também tiveram o
comportamento alterado pelo sono REM: mexem os olhos, o rabo, as patas.
"Isso é a ativação da mesma consciência da vigília: sentem raiva, fome, medo, impulso sexual", diz Luciano Ribeiro
Júnior. Ou seja, o sonho deve estar ligado a essas emoções e a acontecimentos
cotidianos.
Após
várias noites de sono sem o estágio REM, os ratos foram expostos a situações
ameaçadoras similares a algumas que enfrentariam em seus hábitats. Resultado:
em momentos nos quais era necessário apenas agir por instinto, os animais
falharam em procurar abrigo e sair do campo de visão dos predadores, além de se
mostrarem desorientados. Mesmo depois de receberem pequenas doses de
anfetamina, que reverteria os efeitos se o problema fosse somente a privação do
sono, o comportamento dos roedores não se alterou.
Descobertas
como essa fizeram Antti Revonsuo concluir que "os sonhos exercem o papel de um campo de treinamento para
comportamentos essenciais à nossa sobrevivência. Impedidos de sonhar, os
ratos ficaram incapazes de ensaiar seu exercício". Para Morewedge, o mesmo
acontece com os humanos. "A memória
e o aprendizado são definitivamente prejudicados quando as pessoas não
conseguem desfrutar do tipo de sono que está associado com o sonho."
Por que sonhamos?
A resposta à pergunta acima continua desconhecida. Mas entre os vários motivos já especulados pelas recentes pesquisas está a regulação de emoções e fatos aos quais damos importância, minimizando os sentimentos perturbadores. Outro é selecionar e armazenar informações na memória de longo prazo, formando uma rede de experiências relacionadas que podem ser úteis no futuro.
A resposta à pergunta acima continua desconhecida. Mas entre os vários motivos já especulados pelas recentes pesquisas está a regulação de emoções e fatos aos quais damos importância, minimizando os sentimentos perturbadores. Outro é selecionar e armazenar informações na memória de longo prazo, formando uma rede de experiências relacionadas que podem ser úteis no futuro.
Não
foram apenas os Beatles que se beneficiaram com isso. A tabela periódica,
segundo relato de seu inventor, o químico russo Dmitri Mendeleev (1834-1907),
surgiu durante um sonho. Mágica? Não, provavelmente durante o sono o cérebro do
químico organizou várias informações com as quais vinha trabalhando.
Talvez
essa aparente "função treino"
esteja relacionada com a importância das imagens mentais para a memória e o
aprendizado. Segundo escreveu Jonathan Winson, professor da Universidade
Rockefeller, EUA, falecido no ano passado, os estudos sobre a função do
hipocampo, do sono REM e de uma onda cerebral chamada "ritmo teta" mostram que os sonhos são o reflexo de um aspecto
fundamental do processamento da memória. Esse mecanismo ajuda a
transferirmos informação da memória de curto prazo para a de longo prazo. Na
prática, a função teria um caráter evolutivo: avaliar as experiências e
estratégias de sobrevivência, melhorando nossas performances em diversos
aspectos da vida.
Luciano
Ribeiro Pinto Júnior acredita que não há um motivo específico pelo qual
sonhamos. "Tudo é fruto da atividade cerebral." Segundo o
neurologista, há estudos que comprovam a ligação entre o sono REM, o sonho e a
memória, mas isso está se ampliando, já que pesquisas mostram que em outras
fases também há mecanismos ligados ao armazenamento de informação. "O sono
REM é importante para a memória, o aprendizado e a atividade mental. O sonho é
consequência disso", diz.
24h por dia
Nossos
processos de pensamento trabalham 24 horas por dia. A atividade da mente não é
interrompida quando dormimos. Durante o sono, ela começa a selecionar quais
informações guardaremos na memória de longo prazo e o que será descartado. "Aparentemente,
os critérios de seleção estão baseados em valores emocionais para a
autopercepção, nossa ideia de quem somos
e quem desejamos nos tornar", diz Rosalind Cartwright, professora do
Departamento de Psicologia da Universidade Rush, em Chicago, e autora de mais
200 artigos e três livros sobre o tema.
Segundo
Rosalind, qualquer experiência que tivemos durante o dia que seja relevante aos
nossos valores é reativada e conduzida para o hipocampo e o neocórtex. Quando o
sono REM começa, ele transfere essa informação para a memória, procurando por
experiências parelhas. "Isso forma a base do sonho", afirma
Cartwright. Ou seja, o sonho é uma
mistura de imagens novas e antigas relacionadas a aspectos importantes de nós
mesmos. Essa mistura é que muitas vezes torna os sonhos estranhos e
surreais, como padronagens sobrepondo-se umas sobre as outras, em vez de uma
história com começo, meio e fim.
A hora do pesadelo
Os mecanismos que desencadeiam os pesadelos se parecem com os dos sonhos. Ativam as mesmas áreas do cérebro, mas acionam circuitos diferentes. Uma pesquisa da Universidade de San José, na Califórnia, sugere que o estresse tem um papel importante nesse processo. Além disso, afirmam que os sonhos ruins possuem uma função benéfica.
Os mecanismos que desencadeiam os pesadelos se parecem com os dos sonhos. Ativam as mesmas áreas do cérebro, mas acionam circuitos diferentes. Uma pesquisa da Universidade de San José, na Califórnia, sugere que o estresse tem um papel importante nesse processo. Além disso, afirmam que os sonhos ruins possuem uma função benéfica.
Os
pesquisadores dividiram os entrevistados em três grupos, de acordo com a frequência e intensidade de seus
pesadelos, e avaliaram cada um em relação a fatores de estresse presentes no dia a dia. O resultado foi que
aqueles que tinham mais pesadelos conseguiam lidar melhor com as dificuldades
diárias, sugerindo que esse tipo de experiência proporciona mais jogo de
cintura na hora de encarar os problemas.
Para
Rosalind, os pesadelos ocorrem quando sentimos alguma emoção muito intensa, inesperada
ou desafiante, sem nenhuma situação correspondente ou similar na memória de
longo prazo para ajudar a processar aquela informação. "Isso chama a atenção da mente consciente
para um grande problema a ser resolvido", afirma.
Um
trabalho liderado pela professora avaliou os sonhos de pessoas com diagnóstico
de depressão. Aqueles que tiveram mais pesadelos no início do sono tinham uma
probabilidade maior de estarem com os sintomas da doença controlados depois de
um ano, em comparação com os que tiveram mais sonhos negativos no final da
noite. Para ela, isso indica que os
pesadelos que ocorrem no início do sono estão prestando esse serviço de
regulação do humor e alívio do estresse, enquanto que o pesadelo tardio
pode indicar uma falha nesse processo.
Mas,
é claro, sonhar é melhor que ter pesadelos. Em outro estudo, Rosalind realizou
testes com pessoas que estavam se
divorciando. Aqueles que tiveram mais sonhos positivos com o ex-cônjuge
eram também os que estavam lidando melhor com o estresse da separação, sinal de
que a qualidade do sono pode ser um
reflexo do estado de espírito da pessoa ou uma maneira de
"calibrar" a relação.
Geralmente
é quando os eventos do dia causam uma ansiedade
ou excitamento emocional que os sonhos nos mostram como nós estamos
refletindo sobre tais questões. "Não quer dizer que temos que prestar
atenção ao significado do sonho ao acordar. Eles cumprem sua função quer
prestemos atenção neles ou não", diz Cartwright. Ou seja, mesmo que você não ligue muito para o que
acontece durante o sonho, eles estão trabalhando duro para colocar seus
pensamentos em ordem.
Ainda
de acordo com Cartwright, aplicar na vida real o que acontece quando se está
dormindo depende de entender os seus próprios sonhos. Essa linguagem não tem
nada a ver com dicionários de simbologia, daqueles que associam sonhar que
perdeu um dente com a morte de um conhecido e que uma cobra é sinônimo de
traição.
Esse
entendimento é pessoal, baseado em um
sistema de códigos individual, formado pelas experiências de vida de cada um.
Aí cabe a você analisar seus medos,
desejos, decepções, e tentar adaptá-los ao que sonhou na noite passada. No
processo, quem sabe, pode vir à luz mais um clássico da canção ocidental. Se
isso não acontecer, é no mínimo reconfortante saber que a ciência está
caminhando para desvendar o modo como a cabeça de Paul McCartney funcionou naquela
manhã de 1964. Para os cientistas, o sonho não acabou.
Por
Jones Rossi e Juliana Tiraboschi
"A função geral dos sonhos é tentar reestabelecer a
nossa balança psicológica, produzindo um material onírico que reconstitui, de
maneira sutil, o equilíbrio psíquico total. É ao que chamo função complementar
(ou compensatória) dos sonhos na nossa constituição psíquica." (Carl
Gustav Jung)
“Todos nós temos nossas máquinas de tempo. Algumas nos levam
de volta, elas são chamadas recordações. Algumas nos levam adiante, elas são
chamadas sonhos.”
( Jeremy Irons )
“Eu não estava querendo que meus sonhos interpretassem minha
via, mas antes que minha vida interpretasse meus sonhos.”
( Susan Sontag )
“Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Más há
também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isso não tem
importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos
que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano,
dormindo ou acordado.”
( William Shakespeare )
“Há sonhos que devem ser ressonhados, projetos que não podem
ser esquecidos.”
( Hilda Hilst )
“Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje,
carne e osso amanhã.”
( Victor Hugo )
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“Não dependa de ninguém na sua vida, só de Deus, pois até mesmo sua sombra o abandonará quando você estiver na escuridão.”