"Seu corpo sabe mais de você do
que você mesmo. A racionalidade de sua mente e a fragilidade de seu coração
confundem muitos de seus atos. Mas não conseguem matar os seus instintos.
Preste mais atenção neles. Eles apitam o tempo inteiro a direção. E quando você
não a segue, percebe que no fim, seus pensamentos e sentimentos idealizados não
satisfazem tanto as suas vontades quanto aquilo que despertava cada célula viva
em você te mostrando o que você verdadeiramente desejava." (Raquel Souza
Schwenck)
A
obesidade mórbida é assim descrita devido às complicações físicas, e porque
também não incluir as psíquicas, decorrentes do excesso elevado de peso. De
acordo com o Índice de Quetelet, é obeso mórbido o indivíduo que tiver 40 ou
mais na pontuação que nos fornece a massa corporal em Kg/m2. Existem casos de indivíduos
em que o IMC é inferior a 40, mas que já apresentam complicações que reduzem
tempo e/ou qualidade de vida. Quase a totalidade dos pacientes que buscam a
cirurgia bariátrica traz sequelas psicológicas e orgânicas decorrentes do uso
de anorexígenos, numa busca circular de emagrecimento. Depressões são desencadeadas, processos ansiosos se intensificam,
compulsões alimentares se manifestam e até mesmo o transtorno do pânico marca
presença.
Numa
outra perspectiva porém, nos perguntamos sobre esse corpo que se enche exageradamente, aumentando sua forma em
dimensões inimagináveis e se não haveria ai um vazio de outra ordem, que não o
do estômago. E se o vazio não é deste órgão, porque reduzi-lo? Como
conseguir acompanhar essa imagem de crescimento literal que faz com que uma
mulher percorra desde a marca dos 60 até os 200 kg? E como compreender que
apenas pelo limite também imposto literal e concretamente, a psique desses
indivíduos obesos mórbidos, tenham a contenção necessária para abrir mão de seu
recurso de equilíbrio: o comer
desenfreado que não conhece a saciedade?
Dos
72 pacientes avaliados até abril/99, apenas 11 permaneceram em psicoterapia.
Uma parcela pequena se põe para operar uma transformação além do corpo. As
informações médicas, contudo, nos relatam uma grande porcentagem de indivíduos
que se refere a um aumento na qualidade de vida pelo resgate da autoestima.
Corpo
é matéria e Mater é mãe. É condizente pensar na boca como veículo de construção
das noções de Eu e Não-Eu. Ingerir, digerir
e eliminar faz parte do trajeto alimentar, bem como as noções de cheio e vazio a ele pertencem. A mãe é
o primeiro alimento; ela rege o período pré-verbal em que a linguagem do corpo
estabelece as relações. De algum modo, os obesos estão amarrados neste período
de desenvolvimento, o que os faz permanecer infantis na alma mesmo que em corpos
exageradamente crescidos.
O critério de diagnóstico para
TCAP proposto pelo DSM-IV requer a presença de:
Muitos
autores apontam “traços” de personalidade comuns em pacientes com TCAP: baixa
autoestima; perfeccionismo; impulsividade; e pensamentos dicotômicos (do tipo
“tudo ou nada”, ou seja, total controle ou total descontrole).
ASPECTOS
PSICOLÓGICOS DA OBESIDADE MÓRBIDA
Falar
em "aspectos psicológicos" de uma dada moléstia não tem relação
alguma com o estabelecimento de um "perfil psicológico", mesmo
porque, o perfil é apenas uma parcela do indivíduo em questão. Todavia, ao
considerarmos o indivíduo obeso mórbido, não podemos nos furtar de observar nas entrevistas de candidatos à
cirurgia bariátrica, semelhanças em questões reflexivas ligadas ao sofrimento
de ser obeso.
O
psiquiatra José Carlos Appolinário, Doutor em Psiquiatria pela UFRJ, faz um
levantamento de estudos comparados e conclui que não se pode afirmar que os
obesos tenham problemas emocionais graves como determinantes da obesidade.
Estatisticamente, obesos e não obesos não apresentam diferenças quanto à
morbidade psiquiátrica.
A
cirurgia cumpre seu papel: possibilita que o controle da ingestão alimentar
mude de sede; da vontade egóica para o volume do estômago. De algum modo, a
energia psíquica dispendida no estabelecimento do limite do ato alimentar, fica
à disposição da psique, podendo tomar forma construtiva ou destrutiva. O
conflito em relação ao comer se desfaz. Quebra-se o ciclo (vontade de comer,
ansiedade, ato alimentar, culpa, ganho de peso, arrependimento, perda
progressiva da autoestima, isolamento, depressão) e a energia fica livre para
outro alvo. Mas que alvo?
Em
decorrência da restrição do volume alimentar ingerido e do impedimento da
absorção dos alimentos, o indivíduo emagrece sem muitos esforços mentais e sem
o sentimento de privação. O vazio se preenche com pouca quantidade de comida e
as restrições típicas de dietas hipocalóricas são abandonadas. A ansiedade
ligada à possibilidade de recuperar o peso perdido se desfaz mediante a
experiência concreta da medida radical que é a cirurgia. A experiência do limite imposto pelo corpo dá à alma um sabor de
liberdade. Mas a vida não se totaliza pela forma que um corpo adquire ou
pelo conceito que cada um tem de si enquanto Kg/m. As questões humanas
permanecem, ou até têm a possibilidade de surgir em busca de resolução depois
que o "bode expiatório"
sai de cena.
Temos duas categorias de obesos
mórbidos: os
sempre obesos e aqueles que já se experimentaram como magros. Para aqueles que não conhecem um corpo de
dimensões menores, a construção de uma nova identidade física com o auxílio de
uma psicoterapia se faz indispensável. Os que já vestiram manequins bem
menores que os atuais, falam de uma insatisfação com o corpo presente e uma
busca incessante na tentativa de recuperar o corpo que lhes dava identidade. Os pacientes jovens (entre 16 e 25 anos)
têm encontro marcado com a sexualidade encoberta e mal definida pela gordura.
Os já estabelecidos em relações familiares, experimentam mudanças no sistema
familiar e em seus modelos relacionais.
Jung
expressou muito bem a unidade psicossomática do ser humano e suas palavras têm
justificado a continuidade do trabalho psicológico junto à equipe de
profissionais cuja intervenção se dá de forma concreta sobre o corpo:
" Um funcionamento
inadequado da psique pode causar tremendos prejuízos ao corpo, da mesma forma
que, inversamente um sofrimento corporal pode afetar a psique, pois a psique e
o corpo não estão separados, mas são animados por uma mesma vida. Assim sendo,
é rara a doença corporal que não revele complicações psíquicas, mesmo quando
não seja psiquicamente causada."
A
resolução da obesidade enquanto doença crônica que diminui a qualidade de vida
de um indivíduo, pode também ser vista como uma possibilidade de recomeço, e de
abertura para uma nova dimensão existencial.
A
literatura sobre obesidade não está longe de acertar quando nos diz que no
obeso, não há a percepção discriminada das necessidades corporais: fome, sede,
sono, frio, ansiedade, tristeza, dor, todos recebem como alívio a comida. A
voracidade traz à baila um núcleo de insatisfação e a dificuldade em
experimentar limites. Em todos os indivíduos entrevistados (abril/99 ) o corpo
aparece como inimigo. Ele é o depósito de tudo que há de mau e sombrio.
Mas
o que detectamos é um excessivo controle no plano racional, uma cabeça enorme
que só poderia repercutir num corpo grandioso. Ao comer compulsivamente o controle sai de cena, a cabeça tem
condições de relaxar via dissociação e o espírito só volta à matéria quando a
"orgia alimentar" tem fim por um desconforto
gástrico que evoca a consciência do ato de comer.
A
dissociação descrita por indivíduos que se reconhecem como compulsivos
alimentares evoca a imagem de nossa festa tipicamente matriarcal: o carnaval. Nela, a euforia do prazer
da carne é vivida para depois haver a experiência das "cinzas". O Rei
Momo e a ala das baianas são imagens que ilustram bem o valor do corpo e do alimento. Em termos sociais sabemos bem da
função de consolo que o nosso carnaval representa para o povo brasileiro. Há
todo um movimento de compensação desde a inversão do reinado (o magro pelo
gordo, o rico pelo pobre, o negro pelo branco) até a quebra de regras e uso de
substâncias que relaxam uma cultura que cultua o ego.
Também
pela boca entram os "comprimidos para emagrecer", drogas socialmente
valorizadas e vendidas sem grandes critérios ou controle. Tanto as drogas
anorexígenas quanto a cirurgia bariátrica, de certo modo mantêm os indivíduos
passivos em relação ao processo de
resolução de sua obesidade, mas as chamadas "boletas" comprometem
declaradamente a evolução da vida. Dos 72 pacientes com os quais foi feito um
contato ao mínimo, 28 fizeram ou fazem uso de psicofármacos; apenas 2 nunca
haviam feito uso de medicações inibidoras de apetite; 3 relataram tentativa de
suicídio com internamento em clínica psiquiátrica.
Se
por uma vertente podemos ver a carapaça de banha como determinante de um
isolamento defensivo que encobre
sentimentos de fraqueza e fragilidade, por outra podemos perceber nas
dimensões exageradas do corpo um desejo
de poder e de conquista de espaço que se materializa. O evitamento social
pela hipersensibilidade à rejeição e as atitudes do tipo "tudo ou nada" que em si já
predispõem a frustrações, encontram na
comida um prazer imediato e de fácil acesso que exerce a função de tranquilizante
moralmente aceito.
É
de regra que, como parte da sociedade preconceituosa, o próprio obeso se
considere intimamente um ser humano de categoria inferior. Suas expectativas de
perfeição o condenam aos sentimentos de
impotência e incapacidade quanto à resolução de seu problema. Pertinentes a
esses conceitos que fazem de si próprios, sua autoestima apresenta-se reduzida e por vezes, sobrevém uma agressividade intensa que faz do morder
e mastigar constantes seu ato de expressão. Via de regra, os obesos não procuram psicoterapia para buscar um sentido em seu
ato alimentar desenfreado e sua relação distorcida com o corpo, pois em sua
grande maioria consideram o emocional
secundário à obesidade.
Dentre
os transtornos alimentares, há uma nova categoria diagnóstica proposta pelo
DSM-IV, para possível inclusão, denominada (TCAP) Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica. Encontra-se no
Apêndice B do DSM-IV e, até o presente estudo, é diagnosticada nos transtornos
alimentares sem outra especificação.
A
caracterização desse transtorno baseia-se na presença de compulsão alimentar com
subsequente angústia devido à ausência de comportamentos regulares voltados
para eliminação do excesso alimentar. A compulsão alimentar é definida
atualmente por “ingestão, em um período limitado de tempo, de uma quantidade de
alimentos definitivamente maior do que a maioria das pessoas consumiria num
período similar, sob circunstâncias similares, com sentimento de falta de
controle sobre o consumo alimentar durante o episódio”.
O
TCAP foi descrito a partir de
observações de pacientes obesos, porém, apesar de bastante frequente nesse
grupo, também acomete indivíduos de peso normal. Cerca de metade dos pacientes
desenvolve a compulsão alimentar mesmo antes de se envolver em dietas, o que
favorece, por sua vez, o ganho de peso. Estudos epidemiológicos descrevem uma
prevalência de TCAP em 2% da população geral e cerca de 30% de obesos que
procuram serviços especializados para tratamento de obesidade. A obesidade, no
entanto, não é considerada uma doença psiquiátrica nem uma condição para um
diagnóstico de transtorno alimentar; trata-se de uma condição física que advém
de múltiplas causas e pode trazer variadas consequências.
a. Episódios recorrentes de compulsão alimentar.
Um episódio de compulsão alimentar é caracterizado por ambos os seguintes
critérios:
1. ingestão, em um período limitado de tempo
(por exemplo, dentro de um período de duas horas), de uma quantidade de
alimentos definitivamente maior do que a maioria das pessoas consumiria em um
período similar, sob circunstâncias similares;
2. um sentimento de falta de controle sobre o
episódio (por exemplo, um sentimento de não conseguir parar ou controlar o que
ou quanto se come).
b. Os episódios de compulsão
alimentar estão associados a três (ou mais) dos seguintes critérios:
1. comer muito e mais rapidamente do que o
normal;
2. comer até sentir-se incomodamente repleto;
3. comer grandes quantidades de alimentos,
quando não está fisicamente faminto;
4. comer sozinho por embaraço devido à
quantidade de alimentos que consome;
5. sentir repulsa por si mesmo, depressão ou
demasiada culpa após comer excessivamente.
c. Acentuada angústia relativa à
compulsão alimentar.
d. A compulsão alimentar ocorre,
pelo menos, dois dias por semana, durante seis meses.
e. A compulsão alimentar não
está associada ao uso regular de comportamentos compensatórios inadequados (por
exemplo, purgação, jejuns e exercícios excessivos), nem ocorre durante o curso
de anorexia nervosa ou bulimia nervosa.1
Portanto,
de acordo com os critérios de diagnósticos, é necessário que a compulsão
alimentar se dê em um período de tempo delimitado, o que exclui, por exemplo,
indivíduos que “beliscam” o dia todo, pequenas quantidades de alimentos. A
quantidade de alimentos deve ser grande para um determinado período (por
exemplo, período de duas horas), mesmo considerando-se que esse julgamento seja
subjetivo.
Além
disso, é importante o sentimento de
perda de controle, em que o indivíduo fica sem liberdade para optar entre
comer ou não comer. Por fim, o paciente deve apresentar sofrimento relativo a
esse comportamento recorrente e ter sua vida pessoal comprometida em virtude
dessa enfermidade.
O
TCAP acomete indivíduos de todas as raças, com distribuição aproximada entre os
sexos (três mulheres para cada dois homens), geralmente tendo início no final
da adolescência. Mulheres com esse diagnóstico apresentam índice de massa
corporal (IMC= peso/altura ao quadrado) mais alto do que mulheres sem TCAP,
assim como oscilações de peso mais frequentes e maior dificuldade em aderir ou
manter o peso ao tratarem a obesidade. Costumam se auto-avaliar, principalmente
em função de seu peso e forma do corpo, diferentemente dos obesos sem TCAP.
Estudos apontam não só escores mais elevados de sintomatologia depressiva como,
em média, depressão clínica completa em 50% dos casos.2
Em
casos em que o paciente no pós-cirúrgico evolui com sintomas que indicam a
preponderância de humor deprimido e irritabilidade, são usados recursos
medicamentosos até que haja uma adaptação à nova realidade. Esses recursos se
fazem necessários principalmente pela falta de engajamento desses pacientes
operados a um processo de psicoterapia
que os envolva intimamente com suas próprias insatisfações. Há sempre a
tendência de permanecerem passivos, na esperança de serem emagrecidos sem ônus
algum.
A
cirurgia bariátrica tem então, como objetivo, libertar o indivíduo de uma
doença fatal e comprometedora de sua qualidade existencial, abrindo o campo
para que haja tempo para o confronto com questões mais intrínsecas que estarão
sempre se fazendo presentes, e não necessariamente ligadas à obesidade, mas
vinculadas à condição de ser humano.
Significado de
Psique:
Psique (do grego psychḗ,
originalmente "respiração", "sopro", por "eu respiro")
era, entre os antigos gregos, um conceito que definia o self
("si-mesmo"), abrangendo as ideias modernas de alma, ego e mente. O
termo grego psychein ("soprar"), é uma palavra ambígua que
significava originalmente "alento" e posteriormente,
"sopro". Dado que o alento é uma das características da vida, a
expressão "psique" era utilizada como um sinônimo de vida e por fim, como sinônimo de alma, considerada o princípio da vida.
A psique seria então a "alma das
sombras" por oposição à "alma
do corpo".
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“Não dependa de ninguém na sua vida, só de Deus, pois até mesmo sua sombra o abandonará quando você estiver na escuridão.”