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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A arte de seguir em frente – Traumas e Superação

Autor do livro "Traumas e superação" (Editora Roca), Júlio Peres diz que vários estudiosos já reconhecem o potencial de crescimento do ser humano, frente à adversidade. Psicólogo clínico e doutor em neurociências e comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Peres explica, a seguir, por que algumas pessoas têm habilidade para atravessar dificuldades e diz como é possível seguir em frente: Por que alguns indivíduos têm essa capacidade de superar obstáculos?

A cultura chinesa traz uma interessante contribuição sobre possibilidade de prosperar e crescer a partir de acontecimentos dolorosos. A palavra "trauma" (chuangshang) é a justaposição de dois caracteres: "criação" (chuang) e "dor" (shang). Vários autores reconhecem o potencial de crescimento frente à adversidade.

Durante a última década, a Psicologia e a Psiquiatria têm estudado os diferenciais de comportamentos dos numerosos exemplos de indivíduos que cresceram após seus traumas como esteios para novas formulações de estratégias terapêuticas. O número de publicações científicas sobre o crescimento pós-traumático de indivíduos acometidos por acidentes, enfermidades, internações hospitalares, violência urbana e doméstica, assalto, estupro e desastres naturais aumenta significativamente. O conjunto desses estudos revela que a resiliência (capacidade de atravessar adversidades e voltar à qualidade satisfatória de vida), hoje, também, pode ser aprendida e operacionalizada durante a psicoterapia sem negar evidentemente a dor e o sofrimento.

Geralmente, as pessoas que conseguem prosperar a partir das dificuldades apresentam cinco fatores: abertura para novas experiências, desenvolvimento de novos interesses e objetivos de vida; apreciação e valorização da vida; melhor relação familiar e interpessoal permeada por gratidão, bondade e amor; desenvolvimento espiritual, resgate da religiosidade e espiritualidade no dia-a-dia e descoberta de força e recursos pessoais para superação de adversidade, coragem, honestidade e perseverança.

Os estudos concluem que o crescimento pós-trauma se relaciona com o fortalecimento do caráter e da generosidade e esses achados são também observados como preditivos de um estilo de vida saudável em estudos populacionais sobre bem-estar e felicidade. O que geralmente move essas pessoas?

Existe uma frase conhecida entre os velejadores que se aplica à resposta para essa pergunta: "não há vento que possa ajudar, se não existir um objetivo demarcado para chegar". As pessoas que velejam sabem que qualquer vento pode ser aproveitado para chegar ao destino planejado anteriormente. Pois bem, essas pessoas têm como motivação - palavra cuja etimologia envolve movimento - um forte e bem demarcado objetivo. Tal objetivo de vida favorece o investimento da energia física, psíquica e espiritual em uma direção clara, sem desperdício.

Assim como a água, essas pessoas geralmente combinam a força alavancada pela motivação com a flexibilidade, que escolhe os melhores caminhos, desvia das resistências/pedras para chegar agilmente ao destino. Observo em minha prática clínica que as pessoas em dificuldades, ao trazerem clareza dos objetivos e significados para suas existências, fortalecem a motivação e desenvolvem naturalmente o binômio força e flexibilidade para o alcance da superação e da realização pessoal. Qual o diferencial delas?

Estudos sobre resiliência mostraram que três são os diferenciais das pessoas que superam mais facilmente suas dificuldades, assim como seus traumas: auto-diretividade (confiança em seus recursos pessoais); cooperação (visão que envolve o bem do entorno, e não apenas o benefício pessoal) e auto-transcendência (prática da espiritualidade e religiosidade).

Contudo, devo esclarecer que a resiliência não é uma característica rígida ou fechada que simplesmente o indivíduo apresenta ou não. Ao contrário, a resiliência se relaciona com permeabilidade e aprendizado. A psicoterapia especializada tem ajudado muitas pessoas que atravessam dificuldades severas ou apresentam respostas pós-traumaticas a desenvolverem traços de resiliência para a construção do alicerce e pavimento de seus caminhos de superação. Em geral, elas conseguem exercer influência sobre quem convive com elas?
Certamente. Costumo dizer aos meus pacientes que a relação com o entorno é uma via de mão dupla. Podemos tanto receber as influências de episódios inesperados, dolorosos e adversos, como também podemos influenciar o entorno e as pessoas com as quais convivemos.

Pergunto aos meus pacientes ao fim do processo terapêutico, na sessão de alta: se você pudesse modificar o passado hoje, você escolheria não ter passado pela dificuldade que o trouxe aqui? Grande parte responde que a dificuldade os ensinou a construir uma qualidade de vida relativamente superior à que tinham antes da ocorrência dolorosa ocorrer, e, por isso hoje, são gratos pela oportunidade de crescimento que suas vivências adversas lhes trouxeram.

Exemplos de superação também podem influenciar entendimentos e comportamentos saudáveis, especialmente para aqueles que não encontram outras sínteses adaptativas ou representações para o acontecimento doloroso ou traumático. Os neurônios-espelho participam ativamente desse processo em que experimentamos a empatia, reconhecemos os referenciais cognitivos de outros indivíduos e fundimos tais referências ao nosso repertório, permitindo a geração de comportamentos similares de superação. 

Por isso, em meu livro "Trauma e Superação", inseri vários exemplos que também sensibilizarão o processo de crescimento pessoal daqueles que se percebem "sem saída". Qualquer pessoa pode superar obstáculos e seguir em frente? Existe uma fórmula para isso?
A população geral é afetada pelas características traumatogênicas do mundo contemporâneo com a difusão da impotência, fragmentação das funções parentais, solidão, comprometimento da capacidade empática, tendência ao individualismo, incremento da rivalidade em detrimento da solidariedade, desamparo e crise de valores

Alguns desses fatores podem causar micro-traumas e resíduos cumulativos ao longo do tempo, desencadeadores de sintomas tais como aqueles causados por grandes eventos traumáticos. A despeito das influências ansiógenas, (*)estudos epidemiológicos revelam que a maioria de nós sofreu ou sofrerá um ou mais eventos potencialmente traumáticos. Em torno de 10% da população geral apresenta Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e 30%, TEPT parcial, enquanto grupos de risco podem apresentar prevalência do transtorno entre 52% e 87%. (*”Epidemiologia é a ciência da saúde coletiva que estuda a relação de causa-efeito, ou causa-doença.”)


Contudo, a resposta é: sim, qualquer pessoa pode superar obstáculos e seguir em frente. Em meio ao mar da inconsciência e a pressa da vida diária, a adversidade ou o trauma, por outro lado, podem despertar a busca de um sentido maior para a existência. A psicoterapia especializada tem facilitado o desenvolvimento da resiliência, em que as pessoas maximizam aprendizados por meio de suas experiências traumáticas e criam oportunidades de crescimento pessoal com a introdução de novos valores e perspectivas para a vida. Observamos que a angústia e o crescimento pós-trauma ou adversidade podem caminhar juntos quando uma aliança de aprendizado com o sofrimento é construída, favorecendo a construção de benefícios adicionais para a qualidade de vida anterior à ocorrência do trauma.






























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