“...na história entre mães e filhas, quando esta
se torna mais difícil, mais conflitiva, não há vítimas nem algozes, apenas
desencontro e tristeza”.
A mulher, a maternidade e os entrelaces psíquicos entre gerações“Se os pais têm maturidade psíquica para reconhecer seu filho, as fronteiras psíquicas exercem importante função na qualidade desse relacionamento”.
Entre uma mãe e uma filha há muitos mundos... O da paixão, da fusão, da ilusão de que não há limites de compreensão, nem de amor. O do afeto, da amizade, da delicadeza, da realização, da continuidade, do resgate, do carinho, da beleza, da maternidade e infinitos outros.
Há,
também, o universo da raiva, da rivalidade, da cobrança, do conflito, da
inveja, da disputa, da dependência... O que faz com que mãe e filha
sejam referências da sabedoria popular quanto à dedicação e ao carinho e, ao
mesmo tempo, lugar de intensas dificuldades, batalhas e culpas?
Uma
relação tão delicada, peça de teatro de Leila Assumpção que ficou alguns anos
em cartaz em São Paulo e foi assistida por inúmeras mães e filhas, emocionou plateias
ao testemunharem as atrizes percorrerem sua trajetória de vida, do nascimento
da filha ao envelhecimento da mãe. Seguindo
essa referência, vamos começar a pensar essa relação tão delicada no exato
momento em que uma mulher descobre estar
grávida de um bebê do sexo feminino. Apenas para lançar uma luz retroativa
a este instante, o desejo de estar grávida está associado a uma de nossas
primeiras identificações maternas − queremos
ser mãe como nossa mãe. Prova desse fato é a brincadeira preferida das
meninas pequenas: "vamos brincar de
mamãe e filhinha?" A disputa para ser a mãe no grupo de meninas é
feroz. Desejo primeiro e precoce de toda menina − ser mãe, como a própria mãe.
Interações
delicadas
A gravidez é a realização na vida adulta desse desejo primordial e tão postergado. Quando o bebê gestado é do sexo feminino, há quase uma reedição do que foi vivido com a mãe, o difícil e o fácil dessa relação. Reedição com aspectos conscientes e inconscientes, afinal, como Freud incomodamente revolucionou, nossa consciência é apenas a ponta do iceberg do mundo psíquico.
Só para exemplificar, as facetas
inconscientes do psiquismo podem se revelar por meio de manifestações físicas.
Não é incomum a gestante de "primeira viagem" descobrir na
experiência com o próprio corpo a história da mãe: uma paciente que teve várias dificuldades para amamentar no peito seu
bebê soube a partir desse fato que nem sua mãe, nem sua avó materna tinham
conseguido amamentar. Para três gerações de mulheres a amamentação foi uma
experiência dolorosa e fracassada. Genética?
Como assim, o leitor pode se
perguntar?
Fronteiras
Psíquicas
É claro que isso é uma proposição ideal, pois as relações familiares tendem a ser as mais difíceis, justamente pela proximidade, pela ausência de fronteiras e de reconhecimento de diferenças. Com a agravante de que pais com dificuldades emocionais sérias tendem a dispor dos filhos como extensões deles mesmos, para o melhor e para o pior. Para exemplificar, são pais que diante do sucesso do filho comentam: este é meu filho! E diante do fracasso ou das dificuldades: quem é este, não parece ser meu filho! Talvez para o leitor leigo seja estranha a colocação da existência ou não de fronteiras psíquicas entre pais e filhos, ou da necessidade de reconhecimento de que o filho seja um outro. Isso é devido à plasticidade do psiquismo que não reconhece fronteiras concretas, e ao fato de que nos constituímos como pessoas a partir de outros, especialmente os pais. Os limites entre o eu e o outro não são fáceis, nem simples, principalmente entre pais e filhos e especificamente entre mães e filhas.
Exemplificando, lembrei-me de um desenho de uma caricatura na qual estava uma mãe toda descabelada, possivelmente deprimida, e seu bebê lhe oferecia um pente para arrumar o cabelo. Podemos dizer que quanto mais disfuncional é a mente da mãe, mais difícil será a relação com sua filha.
Filiação
Feminina
Mas por que as filhas e não os
filhos são convocados a tão ingrata e infrutífera função? Justamente porque a mãe se
identifica com a filha e vice-versa, pertencem ao mesmo gênero e à linhagem
feminina da família - de mãe para filha.
Os projetos da mãe para sua menina podem ter como característica a realização
pela filha do que foi frustrante na vida da mãe. A mãe, não aceitando o que não
foi possível em sua vida, passa o bastão a sua filha para que ela tenha quase que a obrigação de realizar
planos de vida que pertencem à mãe. Nesse caso não há o reconhecimento da
individualidade da filha, há pouca diferenciação psíquica entre mãe e filha,
uma é quase que totalmente a extensão /continuidade da outra. O que mais
impressiona nessa herança é que ela passa despercebida da consciência da dupla
mãe-filha.
No consultório, casos com essa característica
tendem a buscar análise por outros motivos: problemas no trabalho, dificuldade
de relacionamento com homens, falta de
prazer sexual, sintomas físicos diversos, transtornos alimentares, infertilidade sem causa aparente, etc.
A relação com a mãe é idealizada, não há o reconhecimento de que a fusão é um
sério problema, uma complementa a outra. As
queixas que mobilizam a busca de análise são aparentemente desvinculadas do
relacionamento mãe e filha.
À medida que o trabalho avança, vão aparecendo
os projetos que são específicos da filha
e que não são compartilhados com a mãe; a partir desse momento podem começar intensas brigas ou simplesmente um
afastamento devido às diferenças e à individualidade da filha que está mais
fortificada e definida. Geralmente
esse processo é acompanhado por um estranhamento,
e a filha pode se perguntar: quem é essa
mãe que eu não conhecia, parece ser outra? A filha não tinha ousado ser ela
mesma por intuir que isso desagradaria intensamente a mãe, ou ainda, mais
preocupante, a individualidade da filha pode ser um fator de desorganização psíquica da mãe.
Rupturas
necessárias
Como assim, isso é necessário?
Sim, isso é extremamente necessário; a filha precisa apropriar-se da sua vida, separar-se da mãe, individualizar-se. Até para ter um relacionamento mais satisfatório com a própria mãe. Uma filha que fica fusionada, confundida com a mãe corre o risco de ver naufragarem importantes projetos de vida, como a constituição de uma família ou o prazer de ser mulher que é vivido na parceria com um homem.
Sim, isso é extremamente necessário; a filha precisa apropriar-se da sua vida, separar-se da mãe, individualizar-se. Até para ter um relacionamento mais satisfatório com a própria mãe. Uma filha que fica fusionada, confundida com a mãe corre o risco de ver naufragarem importantes projetos de vida, como a constituição de uma família ou o prazer de ser mulher que é vivido na parceria com um homem.
É comum em algumas famílias que seja a filha, geralmente
aquela que ficou solteira (mas não necessariamente), a cuidar dos pais idosos
ou membros doentes da família; também encontramos a profissional bem-sucedida
que vive apenas para o trabalho e é mantenedora
do lar materno. Ter a liberdade de usufruir da própria vida sem
que isso seja uma deslealdade à mãe ou aos pais nem sempre é uma conquista
fácil, ou podemos até dizer que uma família que transite razoavelmente bem pela
individualidade de seus membros tende a ser exceção e não regra.
Dirão
as feministas, (*)“aquelas que
queimaram o soutien”, que constituir uma família não é mais importante para a
mulher contemporânea. Não sejamos radicais, parece-me que hoje a vida
profissional, a realização como mulher e como mãe, estão sempre implicadas e
representam um sutil e instável equilíbrio entre demandas diversas. Podemos imaginar que eram
felizes as nossas bisavós que foram simplesmente mães, não raro o fato de
abrirem mão da própria feminilidade, de não usufruírem do prazer de ser mulher?
Considerando o
risco da nostalgia pelo passado que diante de nossa visão atual tende a, de
maneira ilusória, parecer fácil, a vida da mulher tornou-se mais rica e mais
complexa.
Maiores chances de realização em campos diversos, porém tudo isso dá muito trabalho e nem sempre é possível atender de forma prazerosa e satisfatória a demandas intensas e diferentes: mãe, mulher e profissional. Além do fato de que se, há pouco tempo, as avós ainda tinham a honrosa função de ajudar com os netos, hoje temos um esvaziamento desse lugar, já que muitas avós são profissionais bem-sucedidas. Lembro-me da tristeza de uma avó médica ao relatar-me que naquele fim de semana não poderia ver seu neto, pois estaria trabalhando, ou seja, é uma situação que tem perdas e ganhos para todos os envolvidos: avós, mães e netos.
E por falar em avós, talvez também seja uma constatação do leitor de que a relação da neta com a avó tende a ser mais fácil do que com a mãe. O que será que acontece? A distância de uma geração parece ter um efeito favorável, o risco de confusões/fusões entre neta e avó é menor; justamente por isso a avó pode se entregar emocionalmente mais à neta e vice-versa. É uma relação na qual a agressividade da filha na direção da mãe, que tem a função de diferenciação, não é mais tão necessária, já que existe entre a neta e a avó a distância de uma geração. Essa relação pode ser uma bem-vinda oportunidade para ambas realizarem um amor filial feminino, mais livre de conflitos. As avós tendem a ser mais generosas e tolerantes com suas netas, e as netas com as avós. Salvo exceções, é claro, há matriarcas que provocam um grande tumulto nas famílias. Um filho é, em parte e principalmente no início da vida, uma extensão de nós mesmos.
Relações
transformadoras
Retomando
o título desse artigo - a difícil
relação entre mãe-filha, o que realmente é difícil?
Não
é possível oferecer a uma filha o que não se tem o que não se herdou da própria
mãe ou não se adquiriu ao longo da vida!
Desnecessário
dizer que essa avó tinha dificuldades
consideráveis no relacionamento com a sua filha! Essa colagem de gerações,
essa diferenciação precária entre uma mãe e uma filha, pode provocar inúmeras situações conflitivas ou, de uma maneira
ainda mais nefasta, gerar uma situação na qual a mãe e a filha não
conseguem se separar, unidas até que a morte as separe. São filhas que após a
morte da mãe chegam ao consultório extremamente deprimidas, não encontrando o
sentido de suas vidas; morreram junto
com a mãe.
Essas
são situações extremas nas quais fica evidente o que em situações não tão
intensas pode passar despercebido: a
dificuldade na separação psíquica entre uma mãe e uma filha, a constituição da
individualidade de cada uma. Essa individualidade nunca é total, mas é
condição de realização de uma mulher que também pode ser mãe e profissional. Aos cinco anos queremos calçar
os sapatos da mamãe,
usar sua maquiagem, seus perfumes, suas roupas. Na adolescência achamos nossa
mãe cafona, ultrapassada. As amigas
são muito mais interessantes e as mães das amigas também podem ser boas
confidentes, já que não são a nossa mãe. As críticas à mãe, muitas vezes
ferozes, modificam-se apenas quando a
filha se torna ela mesma mãe; a partir desse momento o relacionamento entre
mãe e filha pode se transformar em uma parceria mais plena.
Toda
menina precisa ser arrancada dos laços estabelecidos com sua mãe; a função
paterna é separar a menina do corpo/psiquismo oceânico da mãe Identificar
aspectos difíceis em uma relação entre mulheres, geração após geração, não a
torna menos prazerosa e realizadora. O relacionamento com uma filha
pode ser muito gratificante,
se a mãe conseguir ser próxima e distante ao mesmo tempo. Aceitar que sua
menina ou sua adolescente precisa disputar atributos femininos com a mãe em um
misto de admiração e reprovação.
Os contos de fadas são bons exemplos do que pode acontecer na intimidade do relacionamento entre mãe e filha, principalmente no que se refere à rivalidade. As produções culturais fazem parte da formação simbólica de muitas gerações, por isso, são terrenos férteis para demandas inconscientes que encontram aí uma representação.
Era uma vez... “Contos de
Fadas”
Toda
boa história instiga a pensar sobre várias vertentes, talvez até infinitas
possibilidades de articulações, mas vamos nos ater a uma faceta do conto Branca de Neve: a beleza feminina
na sua doçura, fascinação e tormento e que muitas vezes é objeto de disputa
entre mães e filhas.
A
madrasta nos contos de fadas é uma representação dos sentimentos hostis entre mãe e filha que precisam ser distanciados,
não é a mãe e sim uma substituta, para serem expressos. No conto de fadas há
uma riqueza de opostos, de cisões extremadas que comportam intensos sentimentos de amor e ódio: a mãe idealizada
da primeira infância e a madrasta má que revela sem pudor sua rivalidade
feminina - ela é má, invejosa, dizem
o caçador e os anões.
O conto oferece um continente
psíquico para o intenso trabalho de elaboração que é demandado na trajetória
feminina para aproximar e integrar esses sentimentos - nossa amada mãe é também
nossa maior rival. Como compartilhar do amor de um mesmo homem - pai e marido!
Desafio travado com culpas inevitáveis e no qual a beleza pode ser um trunfo
mortífero.
Branca de Neve é desejada bela
pela mãe: a
pele branca como a neve e os olhos negros como ébano. No adolescer de sua
beleza transforma-se em uma linda moça que sonha com seu príncipe que a
arrancará da tirania de sua madrasta/mãe. Arrancar, violar, raptar são
situações que fazem parte do imaginário feminino. Toda menininha precisa ser
arrancada dos laços simbióticos estabelecidos com sua mãe...
Essa é a importância da função paterna, separar a menina do corpo/psiquismo oceânico da mãe. Função que é transmitida pelo pai ao seu acordado sucessor. É o pai que consente com a solicitação do pretendente à mão da filha em casamento, acompanhando-a ao altar onde a transmissão ritualizada se dá.
Espelho, espelho meu, existe
alguém no mundo, mais bela do que eu?
Sua beleza é grande minha rainha, mas Branca de Neve é mais bela ainda. O projeto de vida da rainha/mãe é o (*)efêmero da beleza, tão comum na contemporaneidade. Diante de uma demanda narcísica e frágil não é possível envelhecer e dar lugar à filha, não é possível lembrar-se que a filha foi desejada bela para sucedê-la. O luto da sucessão entre gerações, da passagem do tempo, nem sempre é possível devido a pendências narcísicas aprisionantes - o desejo envenenado da maçã. Nessa situação a mãe não admite uma sucessão, complicando o relacionamento mãe e filha.
Não é incomum vermos nas ruas ou na porta das escolas, mães que se vestem, e algumas se comportam, exatamente igual a uma adolescente - a mãe de microssaia e a filha com um jeans bem comportado. A "mãe adolescente" já na faixa dos quarenta não dá espaço para que a filha viva seu adolescer. Nesses casos constatamos um amadurecimento precoce da filha, que passa a ser mais responsável que a mãe, ou pode acontecer uma triste inversão: a filha tornar-se mãe da mãe.
A beleza, tão almejada pelas
mulheres, pode apenas ser apreciada quando não é objeto de trunfo, de disputa entre mães e
filhas; quando comporta diferenças, parcialidades e quando há o reconhecimento
da sucessão das gerações, da passagem do tempo. Beleza liberta das algemas
narcísicas: a mais bela, a única, imortal e atemporal. As avós tendem a ser
mais generosas e tolerantes com suas netas, e as netas com as avós.
Entre uma mãe e uma filha há a beleza e a feiura, a bela rainha e a bruxa má. Toda mãe é rainha, madrasta e bruxa. Toda filha é sonhada bela para suceder a mãe. A beleza da filha pode ser apreciada e sustentada prazerosamente por uma mãe que pode ser uma bela mulher madura - como a rainha, entre muitas outras belas mulheres. Compartilhar belezas é possível a partir de certo estatuto psíquico que implica a capacidade de entristecer, de envelhecer, de pensar na finitude e na infindável sucessão de gerações, na qual somos apenas um elo.
Entre uma mãe e uma filha há a beleza e a feiura, a bela rainha e a bruxa má. Toda mãe é rainha, madrasta e bruxa. Toda filha é sonhada bela para suceder a mãe. A beleza da filha pode ser apreciada e sustentada prazerosamente por uma mãe que pode ser uma bela mulher madura - como a rainha, entre muitas outras belas mulheres. Compartilhar belezas é possível a partir de certo estatuto psíquico que implica a capacidade de entristecer, de envelhecer, de pensar na finitude e na infindável sucessão de gerações, na qual somos apenas um elo.
A
relação entre uma mãe e uma filha tem sempre aspectos difíceis, é verdade, mas
quem disse que o difícil também não é surpreendente, realizador e prazeroso?
(*)Coisas efêmeras são aquelas
transitórias, passageiras ou que duram pouco tempo.
(*)ver
o site para compreender a expressão: “Bra-Burning” ou “A Queima dos Sutiãs”
por Marina
Ribeiro, psicanalista, professora do curso "Entrelaces psíquicos entre mães e
filhas" no Instituto Sedes Sapientiae; autora do livro Infertilidade e
reprodução assistida - Desejando filhos na família contemporânea (Casa do
Psicólogo, 2004), mestre e doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro
efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
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“Não dependa de ninguém na sua vida, só de Deus, pois até mesmo sua sombra o abandonará quando você estiver na escuridão.”